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escreve sempre que precisares de me dizer que há gelo nas tuas mãos e nas paredes do frigorífico. os legumes que trouxe ontem não sobrevivem a mais do que uma geada, muito menos nós. escreve sempre que precisares, podes dizer-me outra vez que nunca houve inverno, que este ano não há verão, que estamos aqui e não estamos porque não sabemos se somos nós ou se somos aquelas quatro pessoas que vão à rua agora, encontraram a porta certa. escreve sempre que precisares, faz uma lista de compras, uma lista de desejos, anota todos os pedidos que deixaste em poemas atrasados. escreve sempre que precisares de mais um postal com selo e carimbo. escreve sempre que riscares na tua agenda mais uma morada. sempre que eu precisar vais devolver-me uma caligrafia rebuscada que não é a tua, curvas a mais que não fazias na letra d. já não há desses manuscritos, só eu e os carteiros aprendemos a decifrá-los (e toda a gente sabe que nem isso é verdade). vai escrevendo. sempre que eu precisar, as frases podem desviar deixas decoradas, repetidas como as mentiras, demasiado gastas para serem inócuas. escreve em vez de costurares. mesmo que soubesses, não há remendos suficientes, arranhaste sem possibilidade de cura os joelhos, os cotovelos e as canelas (dançar sempre foi um antídoto fora do teu alcance). escreve que eu vejo nas tuas as minhas quedas, os meus soluços nessas curvas a mais que não fazes na letra d: as tuas linhas são rectas, verticais e justas, as minhas letras são apenas caracteres. escreve sempre que puderes só em vez de apenas, recursos humanos em vez de resíduos urbanos. talvez sejamos mais do que pessoas, temos tamanhos diferentes e não servimos nos lugares que nos foram destinados. escreve sempre que precisares de uma porta onde caibas.
Devemos andar sempre bêbedos. Tudo se resume nisto: é a única solução. Para não sentires o tremendo fardo do Tempo que te despedaça os ombros e te verga para a terra, deves embriagar-te sem cessar. Mas com quê? Com vinho, com poesia ou com a virtude, a teu gosto. Mas embriaga-te. E se alguma vez, nos degraus dum palácio, sobre as verdes ervas de uma vala, na solidão morna do teu quarto, tu acordares com a embriaguez já atenuada ou desaparecida, pergunta ao vento, à onda, à estrela, à ave, ao relógio, a tudo o que passou, a tudo o que gemeu, a tudo o que gira, a tudo o que canta, a tudo o que fala, pergunta-lhes que horas são: São horas de te embriagares! Para não seres como os escravos martirizados do Tempo, embriaga-te sem cessar! Com vinho, com poesia, ou com a virtude, a teu gosto.
Passeio madrugador pelas ruas quase sem gente. Velhos de cartas na mão e juventude amputada nos olhos debatem-se com a incerteza do dia da partida. Uma mulher de seios caídos procura-me na memória e só me encontra quando já estamos distantes. Hesita entre voltar para trás e continuar. Continua. Agradeço-lhe a bondade de me poupar de pessoas. Do outro lado do passeio, um homem estendido no chão viaja no sono que lhe rouba, por momentos, a casa que não tem. Sobre o cartão que é uma cama, os ossos sugam-no de nada ter. E o céu carregado, o céu que não passa. No quiosque, uma velhota confessa-me baixinho, como se temesse estar perante um segredo que pudesse colocar em perigo o futuro da humanidade: “eu sei quem você é”. Retiro-me sem uma palavra. Sempre tive inveja de quem sabe mais do que eu.
Bendito quem inventou o belo truque do calendário, pois o bom da segunda-feira, do dia 1º do mês e de cada ano novo é que nos dão a impressão de que a vida não continua, mas apenas recomeça...