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é porque existe o desejo, o olfacto, e o medo,
e os vivos apaixonam-se por outros vivos,
e lembram-se, por vezes, do enorme número de mortos,
e dentro destes há alguns que os fazem desligar a luz e o trabalho,
e o quotidiano aí já não basta,
porque o coração tem em certos dias um orçamento incomportável
E não basta então a mulher que amamos,
nem os filhos
- os que nos vão sobreviver no tempo -
e é preciso sair, e não basta sair para a rua e correr,
é preciso sair dos ossos,
fugir do obrigatório, à casa,
encontrar dentro dos bolsos o bocado de uma carta, de um mapa,
fragmento que possa reconstruir o caminho para a casa da infância
onde Deus era chocolate e o resolvíamos
assim, de uma vez, porque o comíamos
Porque mais tarde crescemos e ganhámos
dinheiro, família, e alguns outros assuntos,
mas perdemos qualquer coisa de que é impossível falar,
de que não sabemos falar.
E é preciso isso tudo,
e por quase tudo o que faltou dizer,
é por isso que é bom, por vezes,
suspender a noite e o coração,
e obrigar o cérebro à paragem surpreendente.
E é por isso que é bom, por vezes,
ocuparmos o corpo no acto de sentar,
e pedir, então, à arte, à literatura, ao teatro,
que nos salve,
por enquanto,
antes de morrermos.
há sem dúvida quem ame o infinito,
há sem dúvida quem deseje o impossível,
há sem dúvida quem não queira nada -
três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
porque eu amo infinitamente o finito
porque eu desejo impossivelmente o possível,
porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
ou até se não puder ser...
e ele diz: tens uma nódoa negra no ombro. e toca com o dedo na nódoa negra. e eu espero. e ele respira na espera, respira na espera, respira a espera. e, depois, a sua mão pousa-me na cabeça e começa a mover-se, para baixo, pelas costas e pernas, até aos pés:
- és tão pequenina.
eu digo:
- sou anã,
ele repete:
- és tão pequenina,
a mão está parada no meu pé, que se aconchega nela, e parece segurá-lo.
A matéria da memória é indefinida e insegura e nela, como na matéria da vida (e a vida é provavelmente apenas memória), se confundem acontecimentos e emoções, imagens e conjecturas, cuja origem nem sempre nos é dado com clareza reconhecer e cuja finalidade a maior parte das vezes nos escapa. E, no entanto, é tudo o que temos, a memória.