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Sempre que penso em ti estás a dançar levemente num clima de canela despenteada, ó aroma vagaroso, desordem aérea, mas a memória tem pressa, o sangue tem pressa interna, e antes de pensar tremo, e depois tremo, pelo meio desenvolve-se o pavor de uma beleza maiúscula, o coração corre entre iluminuras rápidas, é uma criança sucessiva nas pautas da música, assim escrevo uma nação simultânea, desapareces na respiração do teu vestido, entretanto a revelação anuncia-se pelo medo, curvas-te como as aldeias devoradas pela lua, mais tarde sempre que penso em ti estás com um lenço escrito nas duas mãos, e a tua velocidade abranda junto aos espelhos, expandes-te assim lentamente gravada, és uma floresta de silêncios visíveis, sempre que penso penso sempre ao contrário do fim, estás cada vez mais no princípio de ti mesma, então vejo que nesse lugar é o meu começo eterno, quando danças é um corpo rodeando a brancura rodeada ou de novo qualquer coisa criminal entre o cuidado e o espaço, nas linhas puras da solidão arde a cabeça, arde o vento, atrás de ti as imagens assassinas da noite - estrelas: subversão da noite, sempre que penso em ti danço até à ressurreição do tempo.
É a festa. Gritos e canções, as vozes, o estampido alto e transmitido dos foguetes. Pelo seu magnetismo elementar, a festa atrai o homem solitário, o que repousava na cama, um homem grande, com duas mãos maciças, a cabeça amarela debaixo do sol. Anda como um urso. Então pára e põe-se a ouvir o barulho da festa. Esteve muito tempo a dormir, a comer e a pensar. Regressa agora ao mundo veemente e luminoso das pessoas com os seus gestos e palavras largas a sua paixão de pessoas. Ele vem à festa. Afesta não é uma coisa menor. Bem: é uma fábula, uma ficção verdadeira. Porque os homens semearam os campos e cuidaram dps animais. Com sol, neve e chuva, num circuito inexorável. Sempre. Dormiram, acordaram, esgotaram-se. Vivem na escuridão, no vácuo. Têm mãos. Respiram sombriamente sobre as mãos. Depois param. Então criam a festa. As forças irropem do fundo; fazem vacilar o fino e precário equilíbrio da terra. Para lá da lei abolida, s coisas tornam-se visíveis, com uma intensidade, uma transparência anterior: sinais, vozes e tudo. como se o mundo inteiro cavasse uma ressaca no corpo de cada um, e essa límpida desordem deixasse o coração escorrido. É a festa dos homens.
Era uma vez um pintor que tinha um aquário com um peixe vermelho. Vivia o peixe tranquilamente acompanhado pela sua cor vermelha até que principiou a tornar-se negro a partir de dentro, um nó preto atrás da cor encarnada. O nó desenvolvia-se alastrando e tomando conta de todo o peixe. Por fora do aquário o pintor assistia surpreendido ao aparecimento do novo peixe.
O problema do artista era que, obrigado a interromper o quadro onde estava a chegar o vermelho do peixe, não sabia que fazer da cor preta que ele agora lhe ensinava. Os elementos do problema constituíam-se na observação dos factos e punham-se por esta ordem: peixe, vermelho, pintor – sendo o vermelho o nexo entre o peixe e o quadro através do pintor. O preto formava a insídia do real e abria um abismo na primitiva fidelidade do pintor.
Ao meditar sobre as razões da mudança exactamente quando assentava na sua fidelidade, o pintor supôs que o peixe, efectuando um número de mágica, mostrava que existia apenas uma lei abrangendo tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Era a lei da metamorfose.
Compreendida esta espécie de fidelidade, o artista pintou um peixe amarelo.
As linguagens pesadas tropeçam nas suas consoantes, nas sílabas, como um cego tropeça nos móveis de um quarto desconhecido. Já não pretendemos falar todas as línguas. As palavras encontram-se além, sempre além, e é preciso apanhá-las depressa. As vogais que soam, ressoam.
Esse ardor entra pelo homem dentro como uma onda, liga-o todo, entre a cabeça e os pés, liga-o ao mundo à sua frente. A casa fica lá atrás - fechada, fixa -, para um homem se deitar e sentir o sangue correr na carne. Serve para dormir, acordar e pensar, e de novo dormir, e de novo reunir as partes de uma dor, ou uma força, ou uma experiência muito velha no coração. As lagartixas estacam bruscamente na poeira, recomeçam um jogo impene- trável. As moscas traçam no ar a sua geometria hermética. Sobre todas essas coisas o sol bate directamente, e torna-as a um tempo fluidas e violentas.
As mãos tremem-lhe à volta do corpo frio. Perplexidade, porventura um pouco de alegria, uma curta alegria inocente, desprevenida, no meio disso tudo, no seo da própria dificuldade. E partiu novamente com a mala de couro. Caminhou pela cidade como se tivesse muita pressa. E quem pode dizer se à noite, no estrangeiro, depois de duas cervejas no estômago vazio, a rua circular não era mais circular ainda? Ele começava por aquela praça onde havia o anúncio luminoso dos automóveis "Packard" e acabava na mesma praça, om o rosto ansioso voltado para as mesmas letras acendendo em vermelho no meio da névoa: P-A-C-K-A-R-D. Pode recomeçar cem vezes uma frase muscical. Comprova-se cem vezes o resultado de uma experiência física ou química. E ainda se verifica ser no abismo que a principia a ascenção.
Estavam treze graus negativos. Abriam-se algumas ruas em frente da estação. Perto, a praça. Depois da praça, outras ruas, outras praças. A névoa enchia os caminhos, e as pessoas passavam como fora da realidade, apareciam e desapareciam, tão vagas, imperceptíveis, que se duvidava tivessem um quotidiano, a esperança, que morressem, nascessem, morressem.
Os dias longos, as noites no meio do mar. Espero o porto de chegada, as virtudes restituídas, o espírito enfim reconciliado com o mundo. E desembarco, há uma qualquer experiência surpreendente, caminho para o conhecimento. Consigo agarrar essa meada ainda irreconhecível: a maneira como tudo se enreda em tudo. Desabituei-me dos milagres. Sabe-se como é: quase todas as manhãs acordo angustiado, esforço-me por imaginar que este dia é virgem e primeiro, carregado de poderes enigmáticos, destinado às revelações. Literatura. Merda. Trata-se de mais um dia em que me vou chatear, aturar os meus semelhantes, a filha-da-putice teológico-emocional de um Deus que, ainda por cima, não existe. Posso especular sobre a revolução, evidentemente. Que revolução? A revolução, claro. Pois é: a minha revolução não dá um passo.
Levanto à vista o que foi a terra magnífica
e as estações mais bêbadas,
e estou tão leve porque não tenho nenhum segredo,
e tão oculto porque daqui a nada já posso dizer tudo,
daqui a uma pouca ciência saberei pensar
que algum pouco depois estarei morto,
e só de o pensar já nem respiro,
já quase nada toco,
já só vejo no fundo das mãos daquilo que fica escrito
que escrevi coisa nenhuma do mundo até ao esquecimento,
e movendo-me com as unhas movo os nome inúmeros
para dizer que mal nasci logo me deram por morto,
e não fui tido nem havido na razão do episódio
de um rosto ter passado por um espelho
e ter desaparecido,
portanto não me venha ninguém falar de nada
sei bastante do que sabem todos,
vejo a água a mover-se contra si mesma, tão marítima,
e acho até que é bonito,
cada qual morre do quanto alcança e não alcança,
e ninguém compreende,
a água quebra os dedos que escreveram até às pontas
e passa, a água fácil, sem retorno,
porque nada tem retorno e tudo é dificílimo
(não só o máximo mas também o mínimo)
Se eu quisesse, enlouquecia.
Sei uma quantidade de histórias terríveis.
Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio...
Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isso.
Porque, sabe?, acorda-se às quatro da manhã num quarto vazio, acende-se um cigarro... Está a ver?
A pequena luz do fósforo levanta de repente a massa das sombras, a camisa caindo sobre a cadeira ganha um volume impossível, a nossa vida... compreende?... a nossa vida, a vida inteira, está ali como... como um acontecimento excessivo...
Tem de se arrumar muito depressa.
Há felizmente o estilo.
Não calcula o que seja?
Vejamos: o estilo é um modo subtil de transferir a confusão e violência da vida para o plano mental de uma unidade de significação.
Faço-me entender?
Não?
Bem, não aguentamos a desordem estuporada da vida.