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Estarmos juntos é responder à luz que de entre nós se exalta e requer nomes E vamo-nos içando até que o fluxo ritme o natural curso do amigável diálogo E há no coração um entusiasmo puro que é folhagem e música e edifício claro e também chispas de um incêndio feliz De um incontível fundo vamos projectando os impulsos que em espiral ascendem E o percurso ilumina-se e ondula até ao cimo da emoção ébria que é alma e inteligência numa única árvore que estremece e que reina.
Primeiro a tua língua molha o meu coração, num vagar de fera. Estendo aurículos e ventrículos sobre a mesa, entre os copos que desaparecem. Não há mais ninguém no bar cheio de gente. Abres-me agora os pulmões, um para cada lado, e sopras. Respiras- -me. O laser das tuas palavras rasga-me o lobo frontal do cérebro. A tua boca abre-se e fecha-se, fecha-se e abre-se, avançando por dentro da minha cabeça. As minhas cidades ruem como rios, correndo para o fundo dos teus olhos. O tempo estilhaça-se no fogo preso das nossas retinas. O empregado do bar retira da mesa o nosso passado e arruma-o na vitrina, ao lado dos exércitos de chumbo. Entramos um no outro, abrindo e fechando as pernas das palavras, estremecendo no suor dos olhos abraçados, fazendo sexo com a lava incandescente dessa revolução imprevista a que damos o nome de amor.
Vou contar uma história. Havia uma rapariga que era maior de um lado que do outro. Cortaram-lhe um pedaço do lado maior: foi de mais. Ficou maior do lado que era dantes mais pequeno. Cortaram. Ficou de novo maior do lado que era primitivamente maior. Tornaram a cortar. Foram cortando e cortando. O objectivo era este: criar um ser normal. Não conseguiam. A rapariga acabou por desaparecer de tão cortada nos dois lados.
Atravessei contigo a minuciosa tarde, deste-me a tua mão, a vida parecia difícil de estabelecer acima do muro alto, folhas tremiam ao invisível peso mais forte. Podia morrer por uma só dessas coisas que trazemos sem que possam ser ditas: astros cruzam-se numa velocidade que apavora, inamovíveis glaciares por fim se deslocam e na única forma que tem de acompanhar-te, o meu coração bate.
Nós, os mirones, praticamos, às vezes, formas muito rebuscadas do nosso vício. Não nos basta espiar e ser indiscretos, não nos contentamos em indagar a vida dos outros – necessitamos absolutamente de ver para além do que pode ser visto, aquilo que a aparência oculta, e até de construir acontecimentos mesmo quando e onde nada parece existir. É por isso que, enquanto caminho pela cidade, gosto de fotografar dissimulada e aleatoriamente as pessoas à minha volta, a ver se, por acaso, o disparo da máquina capta algum movimento interessante, um gesto ou um meneio de cabeça que, uma vez congelados numa só fracção de segundo, mereçam, depois, que perca tempo a reenquadrar e redistribuir as sombras e a luz até ao ponto em que uma imagem banal e desinteressante se transforma num instantâneo fotográfico que possa vender a alguma revista de actualidades (ou de mexericos).
O mais comum é que as imagens assim captadas sejam totalmente desinteressantes e que fiquem tremidas ou desfocadas, sem nenhum préstimo. Quase sempre as apago logo a seguir, assim que as vejo no pequeno monitor da parte de trás da máquina e confirmo que não há ali nada que se aproveite. Mas não esta manhã.
- Falhamos a vida, menino!
- Creio que sim... Mas todo o mundo mais ou menos a falha. Isto é, falha-se sempre na realidade aquela vida que se planeou com a imaginação. Diz-se: «vou ser assim, porque a beleza está em ser assim». E nunca se é assim, é-se invariavelmente assado, como dizia o pobre marquês. Ás vezes melhor, mas sempre diferente.
Mesmo eu, o que sonha tanto, tenho intervalos em que o sonho me foge. Então as coisas aparecem-me nítidas. Esvai-se a névoa de que me cerco. E todas as arestas visíveis ferem a carne da minha alma. Todas as durezas olhadas me magoam o conhecê-las durezas. Todos os pesos visíveis de objectos me pesam pela alma dentro.
A minha vida é como se me batessem com ela.
O corpo da mulher rola para dentro de casa como um embrulho, as roupas encardidas pela humidade. O cabelo está de tal modo entrelaçado que nem a água quente o conseguirá desembaraçar com a lavagem. Estende-se no chão da sala, exausta. O primeiro movimento que faz é mostrar as cicatrizes dos braços e apontar para alguns sinais junto do umbigo. A carpete fica molhada ao contacto com a roupa, desenhando uma pequena silhueta, uma mancha que há-de ficar para sempre gravada naquele espaço do chão. Mateus está de pé junto a ela, descalço, incapaz de dizer ou fazer o que quer que seja. Sente o calor subir-lhe pelas pernas e as mãos trémulas. Deixa a porta aberta. Das escadas vêm uns grunhidos, alguém grita para que acendam a luz, alguém apanhado na escuridão entre dois andares. Um dos vizinhos abre a porta e pergunta se querem que ele desça com uma pilha. Quem grita é a mesma mulher que ali passa diariamente cheia de sacos de plástico e que agora ameaça deitar fogo ao prédio.
Abro os olhos e não sei onde estou nem quem sou. Não é nada de incomum, passei metade da minha vida sem saber. Ainda assim, parece diferente. Esta confusão é mais assustadora, mais absoluta.
Olho para cima. Estou deitado no chão, ao lado da cama. Já me lembro. Passei da cama para o chão a meio da noite. Faço-o a maior parte das noites. É melhor para as minhas costas. Demasiadas horas num colchão macio provocam-me um sofrimento atroz. Conto até três e dou início ao longo e penoso processo de me levantar. Viro-me de lado, a tossir e a gemer, depois enrolo-me em posição fetal; por fim fico de bruços. Agora espero, e espero, até que o sangue volte a circular.
Sou relativamente jovem. Trinta e seis anos. Mas, quando acordo, sinto-me como se tivesse noventa e seis. Depois de três décadas de sprints, paragens bruscas, saltos constantes e aterragens rudes, o meu corpo já não parece ser o meu corpo, sobretudo pela manhã. Por conseguinte, a minha mente também não parece ser a minha mente. Quando abro os olhos, sou um estranho para mim mesmo e, embora isso, uma vez mais, não seja nada de novo, é mais pronunciado de manhã. Revejo rapidamente os factos básicos.
O Universo é feito essencialmente de coisa nenhuma. Intervalos, distâncias, buracos, porosidade etérea. Espaço vazio, em suma. O resto, é a matéria. Daí, que este arrepio, este chamá-lo e tê-lo, erguê-lo e defrontá-lo, esta fresta de nada aberta no vazio, deve ser um intervalo.