Da minha janela vê-se o teu corpo, é mais ou menos às dez, tu jantas e depois ficas ali, naquele cadeirão na esquina da sala, fumas um cigarro, às vezes dois, olhas para o espaço imenso da cidade, as luzes paradas, os lugares vazios, e eu i...magino que me estás a olhar, é nesses momentos que me emociono, o fumo pelo ar da tua sala e eu a fumar contigo, e não vejo intimidade maior do que um cigarro a dois no silêncio mais profundo da noite.
Da minha secretária vê-se a tua vida, é só um bocadinho mas chega, basta que tenhas de ir buscar qualquer coisa à gaveta dos agrafos e já te vejo, fazes um olhar carregado, talvez não gostes muito de arquivar documentos, organizar capas e recibos, e eu gosto de parar para não gostar contigo, cerro os olhos e tento perceber o que mudou em ti desde a noite passada, perceber se dormiste bem ou não, de que cor é o batom que trazes hoje, quantas vezes olhas a fotografia da tua filha, e não vejo intimidade maior do que olharmos juntos para o que mais amas.
Da minha mesa vê-se a tua solidão, almoças contigo e eu vou também, a mesa do canto sempre que podes, uma comida leve, uma salada ou o peixe do dia, não sei se te disse que não precisas de dieta para nada, se desenhasse o teu corpo era um homem completo, o dia todo a olhar-te, mas não sou artista e só te amo, a mesa do canto longe da janela, provavelmente tens medo das pessoas ou dói-te ninguém, a mim também, ficas a saber, peço o que pedes e vou-te acompanhando sem pressas, e não vejo intimidade maior do que almoçarmos a dois cada um no segredo do seu canto.
Da minha bicicleta vê-se a tua liberdade, corres ao fim da tarde no parque mais perigoso da cidade e eu protejo-te para me proteger do teu fim, vigio-te a uma distância segura, o rio lá ao fundo, os mitras olham-te e eu tremo, um dia isto corre mal, passo por eles e faço-me de mau, eu que nunca bati em ninguém e que era a chacota da escola, para ti faço-me de herói e se for preciso sou mesmo, hoje paraste mais cedo do que o costume e estás dobrada, não sei o que se passa e estou assustado, não és mulher de parar a meio do que te magoa, agora sentaste-te e fechaste os olhos de repente, o corpo desligado e eu não aguento mais, paro a bicicleta e agarro-te com força, felizmente é só um desmaio e tu acordas, eu contigo nos braços e os teus olhos a abrir, e não vejo intimidade maior do que abrires os olhos e encontrares os meus.
Do meu lado da cama vê-se a tua mão, está pousada no meu peito e a vida bem que podia ser só isto, tu a dormires com a tua mão pousada sobre o meu peito nu, a minha respiração e a tua mão a subir com ela, ontem fumaste o cigarro do lado de cá, contei-te que o fumava contigo, mostrei-te por que ângulo te amava, mas o dia acontece, a luz chega e há que trabalhar, tu agradeces, pedes-me desculpa por teres sido fraca e vais-te embora, lanças a possibilidade de voltares a ligar, dizes que não sabes o que nos une mas que vais tentar descobrir, eu deixo-te ir e fumo um cigarro à janela, toda a cidade à procura não sei de quê, e não vejo intimidade maior do que a possibilidade de estar a fumar o mais feliz cigarro do mundo.