o pior de tudo nem é chorar, nada disso, chorar sofre mas acalma, o que magoa desfaz-se em água e toda a gente sabe disso, há que molhar o que corta para cortar doer menos, e
o pior de tudo nem é chorar, digo-to outra vez, sei que dormes ...e não me ouves, eu preferi ficar acordada a perceber como fecham as tuas pálpebras, a forma arredondada dos teus olhos quando adormeces profundamente, tocar-te ao de leve na pele e agradecer a sorte desta cama e nós, as tuas pernas sobre as minhas, tão pesadas que doem e eu aguento, antes a dor do teu peso do que a tua ausência a pesar-me, pousar a minha cabeça entre o teu braço e o teu ombro, ouvir-te respirar, e finalmente respirar, e
o pior de tudo nem é chorar, não sei se te disse, quando acordo procuro-te com os braços, talvez seja ainda antes de acordar, o meu corpo a dormir e já desabrigado, como se quisesse garantir a sobrevivência antes de nascer, estás a dormir e não sabes mas amo-te também com o corpo, um amor musculado, podes chamar-lhe assim, e quando adormeceste e logo depois disseste três ou quatro vezes “amo-te, Carla” eu entendi que o amor é assim e é por isso que se ama, para que nem o sono nos impeça de amar, e nisso somos iguais, amamos mesmo quando dormimos, e é tão bonito amar tão grande, e
o pior de tudo nem é chorar, é a última vez que to digo, prometo-te, porque o pior de tudo nem é chorar, é ninguém ver as nossas lágrimas, o mundo em derrocada e tudo à volta como se acontecesse, o pior de tudo, afinal digo-te mais uma vez, nem é chorar, é chorar sozinho, as nossas lágrimas e ninguém com elas, lágrimas sem tecto, e
o pior de tudo é ninguém ver as tuas lágrimas, e eu não me chamar Carla, claro.