Sentou-se na esplanada, perna cruzada, e esperou que o tempo passasse. Sabia que a vida se resumia, por vezes, a isso: o tempo a passar, entre uma garrafa de cerveja e o vento a correr sobre o rosto. A loucura é acreditar que vale a pena. Recordou as férias, a praia, as correrias e os suores. E a pele dela. Ah, a pele dela. A loucura é acreditar que vale a pena. Fechou os olhos e foi lá, exactamen...te lá, ao momento e ao lugar da pele dela. Às pernas tocadas por baixo das mesas, aos braços roçados por cima das mesas. E aos lábios que se beijavam a cada vez que se falavam. Ah, a pele dela. A pele dela sempre por descobrir. A loucura é acreditar que vale a pena. Toda a pele por descobrir. Ah, o riso dela. Aquela forma de encher a vida com um simples som. Fechou os olhos e acreditou que era agora o tempo do riso, que era agora o tempo da loucura. A loucura é acreditar que vale a pena. E vale.
Deitou-se na cama, serviu-se do corpo. Como se servisse um cálice de vida. Como se celebrasse o que deixou por viver. Há uma vida a mais sempre que se vive o que se deixou por viver. Quis que fosse outra vez o tempo perdido, o tempo do choro, da saudade, da tristeza. Quis outra vez sentir a ausência. Como se fosse a única forma de presença. Como se sentir a falta fosse a única forma de voltar a sentir o que quer que fosse. Como se o tempo perdido fosse a única forma de ganhar tempo. Esqueceu-se dos lençóis chorados, esqueceu-se do nunca mais que se ergueu no eco das horas. E serviu-se do corpo. Há uma vida a mais sempre que se vive o que se deixou por viver. Imaginou-o na esplanada de sempre, no nada querer de sempre, no espaço vazio de sempre. E serviu-se do corpo para não se servir das lágrimas. Imaginou-o na cerveja de sempre, na distância de sempre, na terra sem dono de sempre. Há uma vida a mais sempre que se vive o que se deixou por viver. Imaginou-o o mesmo incapaz de sempre, o mesmo zero de sempre. O mesmo dependente de sempre. E quis, sem sequer chorar ou sentir, ser a mesma louca de sempre. A louca dele. Para sempre.
Havia o minuto de todas as horas na esplanada em que a manhã se fizera tarde. Havia ainda a cerveja, havia ainda a sensação de que não havia espaço para o que os olhos viam. O empregado de bata branca sentado, ao lado, sem saber a felicidade de não ter uma saudade para chorar, a velha sorridente que passa com o neto pelo braço, sem saber o milagre de não ter um nunca foi que nunca deixa de ser. Há um instante em que percebes que foi o que não forçaste que valeu a pena. A esplanada vazia sob o calor tórrido do pico da tarde. A esplanada vazia com aquele homem e aquela cerveja e aquela saudade dentro. A esplanada vazia. A vida resume-se à absoluta sensação de vazio que só o que amas te oferece. A vida resume-se à absoluta sensação de vazio que não teres o corpo de quem amas te oferece. O homem vazio cheio de saudade, a cerveja vazia cheia de verdade. Já nem sequer a velha sorri (“este miúdo dá-me cabo da cabeça”), já nem sequer o empregado descansa. Mais um gole que nada sacia, mais uma recordação que nem o vento carrega. Um homem deixado na sua rotina que não deixa. A felicidade é uma rotina que se repete sempre diferente. Não fecha os olhos, não imagina o que um dia foi nem o que um dia será. Limita-se a sentir, no corpo, aquilo que nem a alma consegue digerir. Limita-se a sentir. A vida resume-se a sentir.
A cama por amar. A mulher serviu-se do corpo e nem o corpo se sentiu servido. O prazer é um produto corpóreo da imaginação. Estendeu-se e sentiu-se estendida, na cama em que todos os êxtases se vieram. E acreditou. Acreditar é um segundo de prazer. Quis estender a recordação, trazer de volta o que sabia que nunca, na verdade, fora capaz de ter. Imaginou-o no sítio de sempre e foi – respiração parada, como sempre. Sabia que não podia, sabia que não devia, sabia que nem ela a si o recomendaria. E acreditou que tinha tudo o que queria: a esplanada de sempre, a ausência de sempre, o nada ter de sempre, a desgraça de uma dependência de sempre. O prazer é um produto corpóreo da imaginação. Acreditar é um segundo de prazer. Não sabe se foi ele que correu para ela, não sabe se foi ela que correu para ele. Sabe que houve um abraço a meio do caminho – mas nem sabe (como saber o que só se sente?) qual era o caminho. Sabe ainda que ele não disse que a precisava, nem disse que a sentia como ela disse que o sentia. E sabe que aquilo, aquele nada dizer, aquele nada sentir, foi tudo o que precisou de ouvir, foi tudo o que precisou de sentir. Regressou à cama e aos lençóis e encheu-os de saudade em estado líquido. Não chorou mais do que o costume, não se quis mais dele do que o costume. E soube que a felicidade podia muito bem ser apenas aquilo: o homem defeituoso de sempre na realidade imperfeita de sempre.