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Agora não há outra música senão a das palavras, e essas, sobretudo as que estão nos livros, são discretas, ainda que a curiosidade trouxesse a escutar à porta alguém do prédio, não ouviria mais do que um murmúrio solitário, este longo fio de som que poderá infinitamente prolongar-se, porque os livros do mundo, todos juntos, são como dizem que é o universo, infinitos.
Primeiro há que encontrar uma boa pedra plana, com mão travessa de altura e larga bastante para meia folha de jornal. O dia não será de vento, para que não se espalhe o montinho de pimenta que, na confusão dos títulos e da letrinha miúda itálica e redonda, vai ser o gatilho desta espingarda. Como toda a gente sabe, a lebre é curiosa, Ainda mais do que o gato, Nem há comparação, basta dizer-se que o gato não quer saber do que vai pelo mundo, a ele tanto se lhe dá, ao passo que a lebre não pode ver um jornal caído numa estrada que não vá logo ver o que se passa, e tanto assim que há caçadores que descobriram um sistema, põem-se de atalaia atrás dum valado e quando a lebre se chega para saber as notícias, trás, fogo nela, o pior é que o jornal fica esfarrapado pelo chumbo e tem de se ir arranjar outro, já se viu um caçador com uma cartucheira de jornais, até parecia mal, Mas então a pimenta, Na pimenta, sim senhor, é que está o segredo da arte, o que é preciso é que não haja vento, mas isso também é condição quando está o jornal na estrada, se o vento lhe dá e vai voando, nem a lebre lhe liga, que gosta de ler as notícias em seu sossego, Muito me conta, Muito mais lhe contarei ainda se tivermos ambos ocasião, e então armado daquele aparato, pedra, jornal e pimenta, é só esperar, se levar muito tempo é porque o sítio é mau para lebres, às vezes acontece, depois não se vá queixar de que não havia caça, a culpa é toda sua, mas quando se conhece o terreno, nunca falha, daí a pouco aparece a primeira lebre, aos saltos, morde além, trinca por este lado, e de repente fica com as orelhas espetadas, viu o jornal, Que faz ela, Coitada, nem desconfia, vai naquela ânsia de saber notícias, corre para o jornal e começa a ler, é uma lebre feliz e contente, não lhe escapa uma linha, mas eis senão quando chega o nariz ao montinho de pimenta e funga, E que é que acontece, O mesmo que lhe aconteceria a si se lá estivesse, espirra, bate com a cabeça na pedra e morre, E depois, Depois é só ir buscá-la, mas, querendo, passa-se por lá umas horas mais tarde e então é um cinturão de lebres, atrás de uma foi outra, é o que têm, são muito curiosas, não podem ver um jornal, Olhe lá, isso é tudo verdade, Pergunte a quem quiser, até uma criança de colo sabe estas coisas.
No coração, talvez, ou diga antes:
Uma ferida rasgada de navalha,
Por onde vai a vida, tão mal gasta.
Na total consciência nos retalha.
O desejar, o querer, o não bastar,
Enganada procura da razão
Que o acaso de sermos justifique,
Eis o que dói, talvez no coração.
Boas tardes, em que posso servi-la, perguntou o recepcionista, Telefonaram de uma agência de viagens há um quarto de hora a fazer uma reserva para mim, Sim, minha senhora, fui eu que atendi, Pois aqui estou, Queira preencher esta ficha, por favor. Agora a morte já sabe o nome que tem, disse-lho o documento de identificação aberto sobre o balcão, graças aos óculos escuros poderá copiar discretamente os dados sem que o recepcionista se dê conta, um nome, uma data de nascimento, uma naturalidade, um estado civil, uma profissão. Aqui está, disse, Quantos dias ficará no nosso hotel, Tenciono sair na próxima segunda-feira, Permite-me que fotocopie o seu cartão de crédito, Não o trouxe comigo, mas posso pagar já, adiantado, se quiser, Ah, não, não é necessário, disse o recepcionista. Pegou no documento de identificação para conferir os dados passados para a ficha e, com uma expressão de estranheza na cara, levantou o olhar. O retrato que o documento exibia era de uma mulher mais velha. A morte tirou os óculos escuros e sorriu. Perplexo, o recepcionista olhou novamente o documento, o retrato e a mulher que estava na sua frente eram agora como duas gotas de água, iguais. Tem bagagem, perguntou enquanto passava a mão pela testa húmida, Não vim à cidade fazer compras, respondeu a morte.
Permaneceu no quarto durante todo o dia, almoçou e jantou no hotel. Viu televisão até tarde. Depois meteu-se na cama e apagou a luz. Não dormiu. A morte nunca dorme.
A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. Quando o visitante sentou na areia da praia e disse:
“Não há mais o que ver”, saiba que não era assim. O fim de uma viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite, com o sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para repetir e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre.
Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites, manhãs e madrugadas em que não precisamos de morrer. Então sabemos tudo do que foi e será. O mundo aparece explicado definitivamente e entra em nós uma grande serenidade, e dizem-se as palavras que a significam. Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas mãos. Com doçura. Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a vontade e os limites. Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do mundo infatigável, porque mordeu a alma até nos ossos dela. Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres como a água, a pedra e a raiz. Cada um de nós é por enquanto a vida. Isso nos baste.
Sorriso, diz-me aqui o dicionário, é o acto de sorrir. E sorrir é rir sem fazer ruído e executando contracção muscular da boca e dos olhos.
O sorriso, meus amigos, é muito mais do que estas pobres definições, e eu pasmo ao imaginar o autor do dicionário no acto de escrever o seu verbete, assim a frio, como se nunca tivesse sorrido na vida. Por aqui se vê até que ponto o que as pessoas fazem pode diferir do que dizem. Caio em completo devaneio e ponho-me a sonhar um dicionário que desse precisamente, exactamente, o sentido das palavras e transformasse em fio-de-prumo a rede em que, na prática de todos os dias, elas nos envolvem.
Não há dois sorrisos iguais. Temos o sorriso de troça, o sorriso superior e o seu contrário humilde, o de ternura, o de cepticismo, o amargo e o irónico, o sorriso de esperança, o de condescendência, o deslumbrado, o de embaraço, e (por que não?) o de quem morre. E há muitos mais. Mas nenhum deles é o Sorriso.
O Sorriso (este, com maiúsculas) vem sempre de longe. É a manifestação de uma sabedoria profunda, não tem nada que ver com as contracções musculares e não cabe numa definição de dicionário. Principia por um leve mover de rosto, às vezes hesitante, por um frémito interior que nasce nas mais secretas camadas do ser. Se move músculos é porque não tem outra maneira de exprimir-se. Mas não terá? Não conhecemos nós sorrisos que são rápidos clarões, como esse brilho súbito e inexplicável que soltam os peixes nas águas fundas? Quando a luz do sol passa sobre os campos ao sabor do vento e da nuvem, que foi que na terra se moveu? E contudo era um sorriso.
Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão. Queres que te diga o que penso? Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, cegos que vêem, cegos que, vendo, não vêem.