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O esquecimento não tem arte. Os momentos de esquecimento, conseguidos com grande custo, com comprimidos e amigos e livros e copos, pagam-se depois em condoídas lembranças a dobrar. Para esquecer é preciso deixar correr o coração, de lembrança em lembrança, na esperança de ele se cansar.
Comportamo-nos como se as pessoas de quem gostamos fossem durar para sempre. Em vida não fazemos nunca o esforço consciente de olhar para elas como quem se prepara para lembrá-las. Quando elas desaparecem, não temos delas a memória que nos chegue. Para as lembrar, que é como quem diz, prolongá-las. A memória é o sopro com que os mortos vivem através de nós. Devemos cuidar dela como da vida.
Devemos tentar aprender de cor quem amamos. Tentar fixar. Armazená-las para o dia em que nos fizerem falta. São pobres as maneiras que temos para o fazer, é tão fraca a memória, que todo o esforço é pouco. Guardá-las é tão difícil. Eu tenho um pequeno truque. Quando estou com quem amo, quando tenho a sorte de estar à frente de quem adivinho a saudade de nunca mais a ver, faço de conta que ela morreu, mas voltou mais um único dia, para me dar uma última oportunidade de a rever, olhar de cima a baixo, fazer as perguntas que faltou fazer, reparar em tudo o que não vi; uma última oportunidade de a resguardar e de a reter. Funciona.
O poder, que é o contrário de prepotência, é saber convencer os outro a querer o mesmo que nós queremos. É muito difícil. Vai contra todas a regras do ego. Mas consegue-se. É por isso que os bilionários são mais esquecidos do que os ditadores ou os grandes pensadores.
A marmelada anda muito esquecida. Mesmo sexualmente. Hoje em dia os casais curtem e enrolam-se e, quando querem falar da marmelada como gente grande chamam-lhe preliminares.
Preliminares. Como se seguissem os apuramentos, as eliminatórias e a taça. Por uma questão de coerência, mais valia chamar finalíssima ao sexo. Como quem diz: agora só para o ano é que volta a haver sexo. Os brasileiros não ajudam com pré-estimulação sexual. Pré-estimulação sexual, no sentido de estar antes da estimulação sexual, pode ser ler o Diário da República à chuva e cheio de tosse.
O futebol está nos preliminares porque a palavra inglesa foreplay, apesar de ser muito mais sexy do que preliminares também é sonsinha. Before play é antes da brincadeira, como se a marmelada não fosse já uma bela brincadeira.
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Nessa sorte sexual, cabe a marmelada. Toda, seja da grossa como da fina. Quem se põe giro e é recompensado com uma boa sessão de marmelada já não se pode queixar.
Os pontos são muito importantes na marmelada. Na marmelada que engorda, há muitos pontos: são o ponto-pérola, o ponto-estrada, o ponto-pau e o ponto-caramelo. Na marmelada que emagrece, há os equivalentes. Mesmo antes do primeiro beijo, há pontos deliciosos por conta própria.
Discute-se muito se há marmelada antes do beijo. Claro que há. Há marmelada verbal, só com palavras e silêncios, que pode ser da grossa. Há marmelada visual, com os olhos e sobrancelhas; marmelada vestuária, com a roupa e a maneira de pô-la ou dispô-la. Há muita boa marmelada, tanto da fina como da grossa, sem primeiro beijo e até sem beijo nenhum. Certo é que, quando se deixa chegar a marmelada a certo ponto, já não se pode voltar atrás. Mas há muitos pontos — todos eles doces — antes de lá chegar.
Chamar marmelada a este conjunto de prazeres tem a vantagem de agradar a ambos os sexos e a todas as sexualidades. Fala-se em marmelada — no meio de uma feira, por exemplo — e toda a gente sorri. Não se obtém o mesmo efeito com preliminares ou curtir.
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De resto, como se explica a mania actual de dizer que tudo é better than sex? Seja chocolate, fazer surf ou um jogo de lençóis fofinhos. A ideia é: nada dá mais prazer do que o sexo, excepto este vinho tinto.
Alguma coisa hão-de estar a fazer mal — ou a não fazer — para andarem por aí a dizer, de tantas coisas, que são melhores do que sexo. Ou, por não terem tido esse prazer há muito tempo — ou ainda não terem tido —, esqueceram-se ou ainda não sabem.
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O literalismo de quem limita a marmelada às mamas é um erro. Levado ao extremo, há quem insista em incorporar a gamboa. A gamboa é muito parecida com o marmelo, mas é uma fruta diferente. O marmelo, sendo mais ácido e perfumado, é muito melhor para a marmelada. Muitas vezes vendem-nos gamboas como marmelos mas não é bem gato por lebre: a gamboa também é boa e também faz doces bons, como a gamboada.
O marmelo tem mais pectina (que também não vem de peito, seus tarados) do que a gamboa, que se pode comer crua. É assim que procuram socorrer-se os literalistas: recorrendo à gamboa e à gamboada. O argumento é o seguinte: se as gambas são pernas, gamboas são pernas boas. Assim, gamboada é, por assim dizer, a marmelada da cintura para baixo. (...) É bom ter mapas, metas e objectivos — numa empresa. Mas não na cama. E muito menos no sofá ou na rua.
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É como a diferença entre a marmelada feita em casa e a industrial. A marmelada feita em casa sabe sempre melhor — e pode-se provar quente. A industrial também pode ser boa — é doce e dá energia e pode vir numa embalagem muito bonita — mas está sempre fria e acaba por sair mais cara.
Os homens cada vez confundem mais serem participantes e espectadores. Não é só no futebol, em que as únicas pessoas com juízo são as que são pagas para estar ali. É na inexplicável mania de ir a clubes de strippers e pagar só para ver, rodeado por outros homens. Onde está a marmelada se é proibido mexer? Na melhor marmelada é sempre preciso mexer. Para a fina, usa-se a varinha mágica. Para a grossa, que leva mais tempo, usa-se o passe-vite.
É um grande pecado não ver as pessoas que são visíves. As pessoas que lavam as casas de banho; que pintam os muros da praia; que limpam as ruas. Ou os velhos e as criancinhas que passam por nós.
O amor é fodido. Hei-de acreditar sempre nisto. Onde quer que haja amor, ele acabará, mais tarde ou mais cedo, por ser fodido. É melhor do que morrer. Há coisas, como o álcool e os livros, que continuam boas. A morte é mais aborrecida. Por que é que fodemos o amor? Porque não resistimos. É do mal que nos faz. Parece estar mesmo a pedir. De resto, ninguém suporta viver um amor que não esteja pelo menos parcialmente fodido. Tem de haver escombros. Tem de haver esperança. Tem de haver progresso para pior e desejo de regresso a um tempo mais feliz. Um amor só um bocado fodido pode ser a coisa mais bonita deste mundo.
Os amigos nunca são para as ocasiões. São para sempre. A ideia utilitária da amizade, como entreajuda, pronto-socorro mútuo, troca de favores, depósito de confiança, sociedade de desabafos, mete nojo. A amizade é puro prazer. Não se pode contaminar com favores e ajudas, leia-se dívidas. Pede-se, dá-se, recebe-se, esquece-se e não se fala mais nisso.
A decadência da amizade entre nós deve-se à instrumentalização que tem vindo a sofrer. Transformou-se numa espécie de maçonaria, uma central de cunhas, palavrinhas, cumplicidades e compadrios. É por isso que as amizades se fazem e desfazem como se fossem laços políticos ou comerciais. Se alguém «falta» ou «não corresponde», se não cumpre as obrigações contratuais, é logo condenado como «mau» amigo e sumariamente proscrito. Está tudo doido. Só uma miséria destas obriga a dizer o óbvio: os amigos são as pessoas de que nós gostamos e com quem estamos de vez em quando. Podemos nem sequer darmo-nos muito, ou bem, com elas. Ou gostar mais delas do que elas de nós. Não interessa. A amizade é um gosto egoísta, ou inevitabilidade, o caminho de um coração em roda-livre.
Os amigos têm de ser inúteis. Isto é, bastarem só por existir e, maravilhosamente, sobrarem-nos na alma só por quem e como são. O porquê, o onde e o quando não interessam. A amizade não tem ponto de partida, nem percurso, nem objectivo. É impossível lembrarmo-nos de como é que nos tornámos amigos de alguém ou pensarmos no futuro que vamos ter.
A glória da amizade é ser apenas presente. É por isso que dura para sempre; porque não contém expectativas nem planos nem ansiedade.
Sair dos dias. Não dormir. Não falar com ninguém. Ficar de fora do lá de fora. Ocupar o coração. À força. Ser como ele. É muito bom e faz muito bem. Espera-se um bocadinho e, pouco a pouco, ele começa a correr para dentro de nós, aflito por atenção. Traz as coisas que adiámos, em que não reparámos, que não tivemos tempo de cuidar. E primeiro vêm as mágoas. A felicidade que recusámos. Sem saber. Sempre sem saber. A tristeza de que fugimos. Voltam. É muito bom e faz muito bem. Sair de nós. Cair nos outros. Não escrever. Ler. Não pensar. Lembrar. Os amigos quietos. O murmúrio do riso que riram. A família parada. O colo onde cabe a cabeça. O amor adormecido. Estas coisas acordam. E sossega saber que nós não somos nada sem eles. E mesmo com eles, quase nada. Escravos de carinhos somos nós, seguindo atrás, de braços abertos, numa fila sem fim. É muito bom e faz muito bem. Sair dos trabalhos, do dinheiro, das palavras que nada querem ou conseguem dizer. Fazer gazeta. Faltar. Desobedecer. É um trabalho também. Não ir. Não responder. Não entregar. É cumprir também. Desmergulhar. Desfazer. Desacontecer. São tarefas também. Ainda mais difíceis, talvez. É muito bom e faz muito bem.