Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
o mundo de vez em quando é-me indiferente são volumes e espaços que o meu corpo não compreende aleijo-me tenho braços e pernas cheios de nódoas negras arranhões nas mãos hematomas lambo as minhas feridas como dantes se dizia que um cão lambe as suas feridas sei o gosto das crostas do sangue dos coágulos da pele tensa sobre a dor se houvesse deus eu não seria mais do que um animal a passar a língua pelos joelhos a sujidade que se acumula neles porque estão perto da rua do alcatrão da terra dos passeios sabe-me sempre a pó a minha pele e em pó me hei-de tornar ou num rolo de cactos secos no deserto dos filmes que se move pelas ruas vazias até parar contra a parede e um rosto surgir mudo como se o silêncio o abrigasse ou fosse o tecto da casa ou a parede que desce num movimento de braço.
Não é dor, nem cansaço, é ranço, as minhas mãos só sabem escrever, as minhas mãos não sabem, as letras destroem-se, destroem as frases, páginas e páginas desta destruição. Os meus olhos, quanto menos, mais paciência têm para os detritos. Eles próprios são detritos. O que vêem lentamente cega-os. Por entre, ressaltam os restos. Tudo é um resto.
estão abraçados
é no meu lado direito que bate o coração dele, contra o meu lado direito
é no meu lado direito que bate o coração dela, contra o meu lado direito
oa olhos secos de se olharem, não antecipam uma palavra, desejam-se num desejo que os afasta para melhor se verem.
O sentimento que têm chama-se curiosidade.
No recanto da praia, absolutamente iluminados, ninguém os vê, só um ao outro
Chora-se por alguém, chora-se, embora eu chore a olhar para mim a chorar, chora-se para que nos digam: não chores, ou para que nos oiçam, mas este choro não ouvido, este choro não visto, anónimo, só um corpo a chorar sem remédio, o choro omitido das desatenções, o choro esquecido no choro, nos seus meandros, mudez e surdez, este choro, sem lugar de choro, é a palavra última, apaga-se nela, este choro é a palavra que se apaga.
— olha. Olha o gajo,
e o bando volta‑se, têm blusões de couro, kispos, botas cardadas, o dedo indicador apontado para ele. E riem. Não lhes vê as caras, não as consegue ver, confundem‑se com as outras que passam, com a oscilação da sombra das árvores, com algumas folhas em queda, são borrões cheios de grúmulos escuros. Carne: murmura. Carne: repete. Um monte de carne. As mãos agarram‑na, erguem‑na, e depois atiram‑na para o cepo. Um som molhado e flácido cola‑se à madeira e espalha‑se nela, como água que se derrama: Uma bela carne. Os rapazes ainda ali estão, mas encostados a uma casa, uma perna dobrada e o pé apoiado na parede. Têm as mãos nos bolsos. E parecem esperar. Às vezes, voltam‑se uns para os outros e falam. Outras vezes, falam sem se voltar, olhos fixos na rua, como se falassem para ninguém. São palavras isoladas, talvez insultos, que fazem virar a cabeça a algumas pessoas, e apressam outras. O homem passa os dedos pela casca de laranja. E os rapazes aproximam‑se dele, aos pares, os ombros gingam, acompanhando o movimento dos pés. Os blusões abertos mostram as T.shirts brancas cujas pregas se desfazem e refazem ao ritmo dos passos. Cercam‑no. São tantas as cabeças inclinadas para ele, lá no alto, deixam entrever a copa amarelada das árvores, com os seus buracos de luz. A boca de um poço. Ouvia‑se a rapariga a gritar: estou aqui, estou aqui. Olhava‑se em volta e não se via ninguém.
está tudo errado. A jarra de flores está errada sobre a mesa errada. Eu estou errado, num quarto errado, a ler palavras erradas. A luz que ilumina o movimento da caneta é uma luz errada. As pessoas são erros que falam de erros e eu sou um erro que as escuta. As minhas palavras são erros que respondem ao erro de outras palavras. A paisagem é um erro. Acaba-se sempre no lugar-comum do erro. Todos os desvios conduzem a esta pobreza. Poderia ser um génio se não tivesse atalhos. Porque os tenho e os percorro, sou um erro na vereda dos erros. Eles dão ao meu corpo, como a todos os outros, o estar sempre a morrer: feridas, desgostos, cheiros, dores. Quem poderá amar esta desorganização? Só um olhar breve cria o absoluto. Porém, o meu, persiste, interrompe e mata. «Amo-te» deveria ser uma palavra em fuga. E é somente uma cristalização.
e ele diz: tens uma nódoa negra no ombro. e toca com o dedo na nódoa negra. e eu espero. e ele respira na espera, respira na espera, respira a espera. e, depois, a sua mão pousa-me na cabeça e começa a mover-se, para baixo, pelas costas e pernas, até aos pés:
- és tão pequenina.
eu digo:
- sou anã,
ele repete:
- és tão pequenina,
a mão está parada no meu pé, que se aconchega nela, e parece segurá-lo.
destruo os meus subúrbios e digo a solidão e crio mais solidão. Deitado na cama, olho o tecto e penso: é o mesmo de sempre, nem a minha infelicidade o transforma, é um pobre tecto de estuque com um fio eléctrico pendurado onde falta uma lâmpada. Na parede, à minha frente, há vestígios de uma estante que foi removida. Estou rodeado de sinais de falta e, como não tenho sono, eles tornam-se exorbitantes, não porque cresçam mas porque ficam cheios de fome.
As palavras na nossa vida vão-se esvaziando e chegamos ao fim com as palavras todas vazias. Dizemos um nome e a pessoa a quem pertenceu já não existe. Essa é a condição humana. Morremos, quando já só temos mortos, é essa a distância que se ouve sempre. É o som da palavra vazia.